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Contos

A Lâmpada

Por Ivan Silva

(Leia escutando Across the Universe, dos Beatles).

    Numa noite fria e completamente estranha, o jovem Pablo tentava pensar em algo diferente, embora estivesse rodeado por elementos que compunham sua rotina. Encostava-se à parede, a cadeira de balanço a ranger madrugada adentro, acentuando seu tédio e fortalecendo a agrura de sua insônia companheira. Para piorar ainda mais sua condição patética ali, sentado como um Buda, bebia café vorazmente enquanto rabiscava algumas besteiras num papel que havia deixado sobre a mesa numa outra ocasião parecida. Não sofria de amor, podia garantir; não havia muito tempo que um grande erro arrebatara-se de sua vida. Sofria de mesmice e de algo que nem ele mesmo sabia explicar. Sentia a alma cheia de um amargo que o deixava enjoado, e tentava encontrar alguma ponta de alegria no emaranhado da solidão que o consumia. Levantou-se de seu trono e partiu para o armário num canto escuro da sala. De dentro dele retirou um disco dos Beatles e o pôs na vitrola que há muito servia apenas como simples decoração qualquer. Sentiu a mente amolecer diante dos vigorantes acordes de Across the Universe. Era o que lhe faltava.
    Os sapatos foram retirados com uma dose de preguiça. Em seguida, as meias caíram sobre o tapete. Com os pés sobre a superfície de pelúcia, Pablo finalmente sentiu um pouco de paz e conseguiu organizar o que em sua mente considerava pensamento. A cadeira de balanço voltou a ranger, mas ele não quis regressar ao estágio maldito de antes. Tratou de deitar sobre o tapete e olhar para o teto, concentrando-se em um ponto de visão que o mantivesse alerta: a lâmpada.
     Dois minutos depois, quando os olhos começaram a lacrimejarem, Pablo parou de olhar para a luz forte. Achou irritante a intensidade daquela fraca lâmpada. Direcionou o olhar para a janela fria e apreciou os fios de luz que provinham da rua e competiam com a forte iluminação que a lâmpada causava dentro da sala. Levantou e apagou a luz. Voltou a deitar e ficou feliz quando percebeu que os fios de luz foram tornando-se intensos devido à escuridão que dominava o local. Aos poucos os fios ficaram imensos e já iluminavam quase igual a pobre lâmpada. A felicidade partira de sua misera vida. Across the Universe foi aos poucos dissipando as trevas e iluminado sua sôfrega mente quase como o erro que há um tempo atrás era o sol colossal de sua existência.
    Adormeceu o pobre jovem sobre o tapete. A luz da rua dominou a sala completamente. Ali, naquele local, Pablo tentava proteger-se do frio que a madrugada cruel trazia sob seu véu prolongado. Das profundezas do inexplicável, várias imagens começaram a se formar na mente do corpo seu esplendor a sensível vista do expectador de um show marcante. Um novo chão projetava-se sob seus pés, e ali na sua frente materializava-se toda aquela explosão de cor e luminosidade. Uma onda maravilhosa de alegria inundou a alma solitária daquele homem, levando-o a aproximar-se da forte luz cada vez mais. Sem hesitar nem mais um segundo, entregou-se àquele novo universo.
    Mesmo tão disforme e tão bruta aquela luz, Pablo, ou apenas um ser prestes a conhecer a magia de algo bem maior que si, sentiu que aquele sol lhe chamava naquele instante e nada poderia impedi-lo de entregar-se a tão nobre emoção. Sentiu o rosto sendo atraído para a epiderme daquela luz plena, e deliciou-se do mais extraordinário beijo, da mais absoluta sensação de prazer que jamais sentira na vida. Sua cabeça foi presa por todo o calor da luz e ali permaneceu a gozar da mais sublime e nostálgica felicidade. Ali de fato estava sendo verdadeiramente feliz. Nunca experimentara e jamais provaria algo maior em toda a sua vida.
    Na sala, deitado ao chão, um corpo estava parcialmente iluminado pela luz do sol da manhã e da realidade. A porta da sala arrombada, um grupo de pessoas a sua volta do homem estirado, analisando-o. De sua boca um foi de sangue já ressecado. Levaram-no dali para um outro local melhor. A sala finalmente estava só e alguém se alegrava com isso. A tarde se foi e a escuridão voltou a dominar a sala, sendo vencida, depois de algum tempo, pelas luzes de rotina da rua.

(Ivan Silva)
Noite do dia 04 de Junho de 2010. Escutava os quatro garotos de Liverpool.


O Anel

Por Ivan Silva

      Havia algo incomum naquele anel, e o jovem Carlos não parava de fitá-lo. Sentia uma energia, uma força que o seduzia a ir de encontro àquela jóia esquecida num gramado que fazia parte da entrada de uma estranha casa. No momento em que ele o avistou pela primeira vez, houve um tipo de choque, um estranhamento que lhe causou um grande calafrio, fazendo-o parar abruptamente. Aquela sensação o deixou perplexo, pois nunca havia sentido algo parecido. Recuperados os movimentos normais, o rapaz avançou mais alguns passos, a curiosidade a empurrá-lo na direção do objeto misterioso, e ele a se deixar levar por este perigoso sentimento. Já a alguns centímetros do anel, não resistiu e o apanhou com voracidade, sem pensar nas conseqüências ou temer uma reprimenda do dono da jóia, que poderia estar procurando-a. Observou o objeto e analisou todos os seus detalhes, os desenhos e sua cor metálica, e constatou que aquilo poderia ter um alto valor financeiro ou sentimental, religioso ou místico. Colocou-o no bolso do casaco, o olhar desconfiado a inspecionar o local à sua volta, e decidiu ir para casa, pois desejava examinar com cuidado seu novo achado. Sem dúvida aquilo era muito mais que um simples anel.
      Já em seu quarto, afastou todas as tralhas que estavam sobre sua escrivaninha, pegou a lupa em sua gaveta e se preparou para analisar profundamente aquele objeto. Reparou que na superfície do anel havia algumas letras, e logo leu o nome Transcender, cravado no metal com bela caligrafia. O detalhe é que o jovem não entendeu o significado da palavra, e precisou recorrer a um dicionário. Lá estava dizendo que transcender significava passar além, ultrapassar, exceder. Imediatamente ele se viu preso por indagações: “será que isso é alguma mensagem pra mim?” Por que alguém escreveria isso? Lembrou que há certo tempo, na escola, um amigo chamado Miguel havia recomendado que ele lesse as obras de um grande filósofo chamado Nietzsche, pois essas leituras fariam ele transcender, ou seja, alcançar novas possibilidades mais interessantes, superar as regras e imposições que não permitiam que sua sabedoria avançasse. Recordou ainda as palavras do velho amigo, aconselhando-o a questionar os valores cristãos e a se libertar de suas convicções, de seu fanatismo, pois aquilo era um grande empecilho que estava matando sua juventude. À sua mente também vieram lembranças dos momentos em que censurava Miguel, pois temia que as palavras libertárias desse sujeito surtissem efeito, e ele acabasse tornando-se aliado e defensor dos devaneios de seu companheiro. Agora Carlos começava a entender a amplitude e a periculosidade da palavra transcender. Teria sido melhor ter deixado a jóia no lugar onde estava, pensava naquele instante.
     O jovem Miguel era realmente estranho e se comportava de forma anti-social. James Dean, Morrison, e Raul eram seus ídolos. Na época em que Carlos e ele viviam era muito perigoso questionar qualquer valor, por mais simples e insignificante que fosse. Era a famosa era militar no Brasil. Enquanto Carlos procurava se distanciar da desobediência civil, Miguel mergulhava gostosamente nas águas turvas do perigo, e se deliciava em leituras e discos censurados, que ele adquiria não se sabe como. De qualquer forma, aquele anel agora perturbava a mente de Carlos, despertando nele uma enorme curiosidade a respeito do paradeiro do amigo e fazendo-o pensar seriamente em tudo aquilo que Miguel havia dito-lhe há oito meses atrás. A guerra de valores voltava, naquele momento, a fragmentar seu espírito, e ele acabou arremessando o anel contra a parede, na tentativa de se libertar daqueles pensamentos contraditórios e inflamáveis, puramente migueístas. Abriu a janela e deitou-se na cama. Cochilou pensando no amigo.
     No dia seguinte, ao chegar à escola, Carlos presenciou um violento protesto contra a repressão militar, organizado por estudantes. No meio da movimentação, viu vários de seus colegas ensangüentados, com as roupas rasgadas, vítimas da violência policial. Aquela cena o deixou absolutamente chocado, despertando uma enorme fúria em seu interior, capaz de transformá-lo num assassino em poucos instantes. Não sabia como controlar aquela sensação, mas sabia que ela era proveniente de seus instintos e completamente superior a qualquer regra ou norma responsável pela domesticação humana. Não pensou mais. Avançou na direção dos feridos para tentar ajudá-los, mas acabou sendo agarrado pelo pescoço por um policial, e atirado próximo a um grupo que sustentava uma enorme faixa, com algumas palavras que ele não conseguia compreender devido à força do golpe, que havia o deixado tonto. Permaneceu deitado no chão por algum tempo, na tentativa de recuperar as forças e para pensar no que faria. Já de pé, correu para junto do grupo, que agora estava disperso, pois estava ansioso para ler o que estava escrito na faixa que a pouco havia visto de relance. Passou entre as pessoas, desviou de alguns policiais e conseguiu ficar frente a frente com a mensagem escrita em vermelho no tecido alvo nas mãos dos estudantes. Quase desmaiou quando leu o que estava escrito. As palavras eram claras:

“Estudante Miguel Maia é brutalmente assassinado por soldados na Rua Augusto de Assis, no dia 05 de Maio, por liderar protestos contra a repressão.

    Carlos não acreditava no que lia. Seu amigo havia morrido como herói na rua em que ele havia encontrado, na tarde do dia anterior, o anel com a palavra transcender. As lembranças vieram como uma onda implacável da qual seria impossível se desvencilhar, e ele se entregou ao choro e ao desespero. O anel metálico, de aparência enigmática, revelava muito do espírito de Miguel, e a ele pertencia até o dia em que os donos do mundo e os defensores da ordem vieram arrancá-lo de seu dedo anelar, com uma fúria inútil e incompreensível. A morte veio para Miguel como conseqüência de uma existência transcendente e bombástica, revolucionária. Já a vida permanecia em Carlos como privilégio conseqüente do medo e da regra.

(Ivan Silva)

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